Paróquia São Judas Tadeu - Icaraí

“Senhor, por que razão hás de manifestar-te a nós e não ao mundo?” (Jo 14,22)
Creative Commons Zero (CC0)

Que tipo de visão de mundo pode ser compreendida a partir desse famoso trecho da oração Salve Rainha?

Após ler sobre a origem da oração Salve Rainha, um leitor nos escreveu questionando o sentido da expressão “vale de lágrimas” e nos perguntando se a visão cristã do mundo terreno é negativa e pessimista.

Não, não é. Mas também não é ingênua nem alheia aos angustiantes sofrimentos da humanidade.

Por isso, ao mesmo tempo em que reconhecemos, cantamos e louvamos as belezas da criação e desfrutamos saudavelmente das maravilhas da obra de Deus, também enxergamos que a nossa Casa definitiva não é neste mundo e que, antes de chegarmos a ela, somos convidados por Deus a escolhê-la livremente.

Deus poderia muito bem ter nos criado diretamente para o Céu, sem precisarmos passar por esta etapa material e mortal da nossa vida terrena. Mas Ele quis nos dar a oportunidade de aceitar ou recusar o Seu convite à eternidade com Ele, o que implica, de nossa parte, uma resposta livre, concretizada em nossas escolhas. Essas escolhas envolvem o bem e o mal e, por isso mesmo, nos colocam diante das consequências da escolha do bem ou do mal por parte dos nossos irmãos e por nossa própria parte. Além das consequências das nossas escolhas, a nossa experiência humana neste mundo transitório é imperfeita por sua própria natureza, já que não é esta a vida plena para a qual somos convidados: ela acaba – e o tudo que acaba é, necessariamente, imperfeito.

Uma vez entendida esta visão cristã do mundo terreno como uma experiência do bem e do mal em que nós temos a liberdade de escolher, também podemos entender melhor o sentido da expressão “vale de lágrimas“: ela não é uma imagem pessimista, mas sim realista deste mundo passageiro, no qual convivem as alegrias e as tristezas, assim como convivem o bem e o mal, permitindo-nos em meio a eles a experiência humana extraordinária de exercer a liberdade de escolha.

Para complementar esse entendimento, reproduzimos a seguir um texto de dom Nuno Brás da Silva Martins, bispo auxiliar de Lisboa. O texto foi adaptado à grafia e à sintaxe do português brasileiro. Diz ele:

Confesso que comecei por entender a expressão “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”, da Salve Rainha, como fruto de um cristianismo pessimista, vivido essencialmente com o pensamento na cruz do Senhor e com a ideia de que tudo, no mundo, era mau. Por isso compreendo tantos que têm dificuldade em rezar esta antífona que faz parte da nossa tradição mariana. Certamente, e digo isto sem qualquer tom de crítica, reconheço que muitos a rezarão naquele tom resignado e derrotado.

Mas devo confessar, igualmente, que hoje rezo essa oração como expressão grande da fé.

É que, por mais que nos esforcemos, de um modo ou de outro, todo ser humano vive momentos de sofrimento e de solidão, de abandono e até desespero, de morte. Não vale a pena criar a ilusão (nem sequer e muito menos nas crianças) de que a vida será sempre um caminho de vitórias e sucessos, de alegrias e conquistas. Mesmo as historinhas que terminam com o célebre “e foram felizes para sempre” começaram ou passaram por um ou vários momentos de dificuldade dos protagonistas.

Contudo, hoje (como sempre) não são necessárias “historinhas”. Basta ter os olhos abertos para o mundo humano que nos envolve. E se nós não estamos passando por algum momento difícil, olhemos à nossa volta – e não precisamos procurar muito: o desemprego, as famílias destroçadas e desunidas, a falta de sentido para a vida… todas as misérias materiais, morais ou espirituais estão bem ali, ao nosso lado. E, não raras vezes, nos sentimo impotentes para dar uma ajuda, pequena que seja, àqueles que passam por esses momentos difíceis.

É por isso que o grito cristão que se dirige a Deus, por intermédio da Virgem Maria, neste “vale de lágrimas” que é a vida humana, mais do que expressão de alguém resignado à sua sorte, é, antes, o reconhecimento de que apenas Deus pode, verdadeiramente, resolver as lágrimas humanas – nossas e de tantos que vivem conosco.

Também Deus, em Jesus de Nazaré, experimentou (e como!) o “vale de lágrimas” que quis tornar seu; mas, ao mesmo tempo que o vive de modo plenamente humano, Ele mostra que não será nunca a morte quem tem a última palavra. A última palavra será sempre pronunciada por Deus, e será sempre uma palavra de amor, de vida eterna!

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