A crise de identidade
Para se falar da crise de identidade, é preciso primeiro entender o significado de identidade. Fala-se em identidade ontológica, psicológica, genética, sexual, relacional e social. O ser humano é um complexo extraordinário que o constitui como pessoa humana. As diversas identidades da pessoa humana (genética, ontológica, psicológica, metafísica) encontram-se na pessoa e estão inextricavelmente entrelaçadas.
A identidade da pessoa humana não é simplesmente representativa, seu conceito é elaborado a partir de contribuições genéticas, sociológicas, filosóficas e teológicas. O conceito de identidade foi empregado, pela primeira vez, por Erik Erikson (1902 – 1994), em sua obra ‘Juventude e Crise de Identidade’, publicado em 1968, sendo que o termo “identidade” se refere à totalidade da pessoa e integra os componentes biológicos, psicológicos e sociais.
A identidade, entretanto, não é estática, ela evolui de acordo com as modificações que o ser humano, desde seu nascimento e infância, passa para atingir uma identidade adulta, ou seja, um eu maduro, uma identidade integrada. A falta de integração de todas as partes desse eu (masculino/feminino, bom/mau, superego admirado/superego desprezado) consequentemente cria um falso eu.1
A identidade é individual
Sendo a identidade um conceito mutável e dinâmico, atravessa diversas fases de reestruturação em coincidência com alguns períodos da vida do indivíduo, que podem ser críticos e que exige reestruturação da identidade.2 A identidade é um dos aspectos mais importantes de um indivíduo. Cada pessoa desenvolve a sua. Possuímos características distintas, as quais nos diferenciam dos outros e estão relacionadas à nossa história de vida pessoal. Na identidade de pessoa, há aquilo que é o ser, a essência, que permanece, e a história que é dinâmica e evolui.
Desde que fomos concebidos no seio de nossa mãe, vamos tecendo nossa identidade. A identidade ontológica do ser humano não se altera, aquilo que ele é, pessoa, imagem e semelhança de Deus, com dignidade intrínseca, é estável, inalterável; o que realmente pode ocorrer é uma alteração de ordem psicológica, social e histórica.
Compreender a identidade ontológica do homem é reafirmar o caráter singular do respeito à sua identidade e dignidade como requisito para sua igual consideração como pessoa, livre de qualquer forma de manipulação. A identidade ontológica constitui um bem da pessoa, uma qualidade intrínseca de seu ser e, então, um valor moral sobre o qual funda o direito/dever de promover e defender a integridade da identidade pessoal e sua dignidade.
Entendemos que todo indivíduo é um ser único, irrepetível, com composição genética própria, distinta da dos demais indivíduos, e que a identidade genética seria então a base biológica da identidade de pessoa, porém, esta não se resume ao genético, pois tem como referencial tanto o aspecto biológico como o meio.
Formação da personalidade
Cada surgimento de uma pessoa no mundo é sempre uma nova criação. À identidade estática ou genética acrescentar-se-ão, desde o momento inicial da vida, outros elementos que vão modelar uma certa e original personalidade. A partir da concepção, estão dadas todas as possibilidades futuras que permitirão a projeção social de uma determinada personalidade social.
Tudo isso nos indica que o ser humano, em sua identidade de pessoa, é mais do que ter um genótipo humano, significa que ela tem uma identidade de pessoa ou antropológica, tem um aspecto transcendental. Por isso, é cada vez mais necessário salvaguardar a pessoa em sua totalidade, seu valor, bem como sua identidade única e irrepetível, que constitui o cerne, o núcleo do direito a ser respeitado em sua excelência.
É certo que a identidade pessoal é construída ao longo da história da pessoa com influências “externas”, como educação, família, cultura e meio ambiente; e tudo é resultado de uma ação plural coparticipada. O conceito de identidade da pessoa humana é elaborado a partir de contribuições genéticas, mas também econômicas, sociológicas, filosóficas, teológicas etc.
O homem e o Criador
Fazendo uma leitura atenta do pensamento de Lévinas e Dussel à luz da antropologia cristã, entendemos que a identidade do homem, em nível ontológico, vai se firmando na relação com o Criador e com o semelhante, é o encontro inteligente e afetivo do Criador com a criação e de toda a criação, a identidade que se firma como reflexo de sua ação no mundo e o torna responsável pelo futuro da humanidade.
A contribuição da teologia dá-se na elaboração do conceito de vida, no resgate da pessoa humana imagem e semelhança de Deus e no conceito de identidade da pessoa que não se prende apenas ao biológico, social, psicológico etc., mas que é elaborado também a partir de princípios teológicos.
E quando não tenho certeza de quem sou?
A identidade da pessoa está inserida em uma rede de relações próximas e distantes, nos sentidos vertical e horizontal e, em conjunto, todos necessitamos de proteção. No entanto, descobrir quais efeitos sobre as pessoas em particular e sobre a humanidade em geral, agora e no futuro, sobre os quais os cientistas sociais deveriam investigar exige reflexão prévia e cuidadosa análise dos resultados possíveis e seus prováveis significados para o ser humano.
Às vezes, deixamo-nos levar pelos condicionamentos sociais, até que, no final, conseguimos descobrir nossa própria identidade, uma identidade única, nossa, própria, que alimentaremos de forma positiva até o fim dos nossos dias. Mas o que acontece quando não temos muita certeza de quem somos? As dúvidas nos rodeiam, sentimo-nos inseguros e começamos a sentir que existimos sem existir. Uma série de pensamentos que dirigem a um vazio e a uma solidão aterradora.
O processo de construção de identidade é contínuo, e, ao longo do tempo, podemos nos deparar com situações conflitantes, gerando crises de identidade. Essas crises têm reflexo direto na forma como a pessoa se percebe, identifica-se ou não. O processo de crise pode desembocar em situações conflitantes da consciência de si, da perda da sua identidade, levando muitas pessoas a se colocarem em atitudes de ateísmo como desejo de emancipação e libertação.
Identidade sexual
A identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes e complexos compreendidos dentro da identidade pessoal, quando em desajuste, pode gerar crise na pessoa. De acordo com médicos e psiquiatras, sexo biológico, gênero, orientação e expressão são elementos que formam o comportamento sexual humano e estes devem estar relacionados, e o indivíduo se identifica em todos os aspectos com o seu “gênero de nascença”.
A crise de identidade pode levar esse indivíduo a não se identificar com o sexo biológico; daí, surgem os que chamam de multiplicação de gêneros, ou seja, o gênero com a qual uma pessoa se identifica ou se autodetermina, independe do sexo biológico. As distorções de pensamento contribuem para esse quadro, distorcendo o sentimento e o ponto de vista acerca de si mesmo.
O que nos leva a uma crise de identidade?
Para um dos maiores estudiosos do tema, o psicanalista Erik Erikson, crise de identidade é um tempo de exploração intensa das diferentes maneiras de olhar para si mesmo. Crises de identidade podem ser resultado de vários fatores como de ordem psicológica, espiritual, existencial, social, familiar, hormonal etc.
É possível obter mudanças significativas no quadro negativo que uma pessoa faz de si mesma por meio da terapia. Ao aprender a identificar corretamente o tipo de “pensamento desajustado”, a pessoa pode agir de forma construtiva sobre as distorções de pensamentos, que podem estar criando conflitos em determinada fase da vida.
A identidade de pessoa é a maneira de ser, como a pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica, é o direito que tem todo o sujeito de ser ele mesmo.
Podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. Como afirma Stuart Hall, existe, hoje, uma crise de identidade, pois os quadros de referências tornaram-se instáveis, as identidades unificadas e estáveis então se fragmentando. Com essa análise, postula-se que não existe uma identidade, mas identidades.3
Sujeito fragmentado
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas nos últimos anos. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Essas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.4
Nesse contexto, Hall assinala que assim se instala uma crise de identidade, uma vez que o que antes estava centrado e estável, não o está mais; isso gera um sujeito fragmentado. Esse seria o sujeito pós-moderno: não possuindo uma identidade essencial ou permanente.5 A identidade torna-se uma “celebração móvel”, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. 6
Estabilidade psicológica
Queremos com isso dizer que o sujeito precisa de um conjunto de valores e princípios psicologicamente estáveis para manter-se indivíduo (indivisível ou constante) diante do mundo e dos outros (diferente); e para ver-se como indivíduo em meio às representações psicológicas e sociais que experimenta ou vivencia.
Por outro lado, interagindo com um contexto sociocultural diversificado, múltiplo e até mesmo instável, precisa desenvolver esquemas psicológicos de inserção mais ou menos bem sucedidos dentro desse contexto e sua trama, para que se veja sendo alguém e ocupando um lugar no mundo. Em suma, o sujeito precisa ter certa estabilidade psicológica para formar sua identidade e, ao mesmo tempo, conviver com o plural, o incerto e o mutável do contexto social pós-moderno.
Referências:
1 VERDE, J. B. e GRAZIOTTIN, A. Transexualismo: o enigma da identidade. São Paulo: Paulus, 1997, p. 20.
2 Cf. VERDE; GRAZIOTTIN, op. cit.
3 HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz T.(org) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 2ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
4 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005, p. 9.
5 Cf. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.
6 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005. p. 12-13.