O Pe. José Eduardo de Oliveira se tornou especialmente conhecido no Brasil após defender com brilhantismo a vida do nascituro na audiência pública do Supremo Tribunal Federal a respeito da descriminalização do aborto no país (veja link recomendado ao final deste artigo).
Certa vez, estava com um grupo, de carona num carro. De repente, um rapaz disparou a contar com euforia uma história; pelos modos e pela tonalidade, parecia algo maravilhoso, como um grande feito: “esses dias sonhei que estava casado e chegava com minha esposa para a lua-de-mel. Quando entramos no quarto, pensei comigo: ‘meu Deus!, eu vou perder no céu a coroa da castidade da qual falava Santo Afonso!’ Então, eu peguei uma faca e comecei a matá-la, mas com tanta, com tanta felicidade que eu acordei rindo! Nossa! Ainda bem que foi só um sonho”, e disparava a rir.
Àquela altura, eu quase pulei pra fora do carro em movimento. Nunca tinha ouvido narração tão macabra, mas o que mais me impressionou foram as reações espontâneas de alegria. Tenho pra mim que aquela boa alma não se dava conta do disparate escandaloso que dizia e talvez hoje nem pense mais naquele assunto.
Contudo, coisas do tipo acontecem com frequência. Um colega padre me disse que, quando precisa dar os avisos paroquiais no fim da missa, uma alma muito “devota” que está em ação de graças após a comunhão, costuma levantar a cabeça e fulminá-lo com um olhar de raiva. Decerto não entende a necessidade pastoral de dar um aviso antes que o povo se disperse e pensa apenas em sua própria edificação pessoal. Mas, sendo a Eucaristia o Sacramento da caridade, como se justifica que alguém possa querer fazer atos de amor a Cristo e lançar um olhar de ódio no mesmo instante? Há algo de errado nisso!
Quando vejo pessoas maníacas por vasculhar pecados no lixo do passado ou inventar-se uma centena deles desde os últimos dias, é indissimulável que elas jamais conseguirão crescer no caminho de santidade antes de abaterem esse tipo de espiritualidade narcisista, em que o olhar do indivíduo está demasiadamente concentrado sobre si mesmo.
É evidente que todos devemos lutar contra o pecado, mas isso em função de um bem infinitamente maior: desenvolvermos em nossa alma a fé, pela qual nos unimos a Jesus Cristo, a quem amamos, juntando, assim, à fé a caridade.
Em alguns casos, a ênfase em limpar-se de pecados é similar à compulsão de algumas pessoas por lavar as mãos. O transtorno higiênico não é fruto de uma verdadeira sujeira, mas da sensação de sentir-se sujo e precisar lavar-se a cada cinco minutos. São casos psiquiátricos, tratados com medicação e psicoterapia.
O mais habitual, porém, é a velha vaidade de quem se considera importante ao ficar verificando no espelho de suas próprias ações se usar uma camisa com a gola aberta seja pecado mortal ou se assistir um jogo da copa também o seja. O olhar permanece concentrado sobre o próprio eu, não há o sacrifício do amor próprio, o egoísmo ainda prevalece e, com ele, aquela trava que nos impede de crescer na contemplação.
Frequentemente, essas pessoas começam a estudar tratados de mística e se embriagam com uma linguagem espiritual. Contudo, não praticam as virtudes verdadeiramente, não se mortificam com verdadeira humildade, não servem os outros com espírito de abnegação e, por isso, adquirem apenas uma santidade aparente, um disfarce de caridade sobre a bruteza dos próprios vícios não superados.
Eles não entendem que moral, ascética e mística não são assuntos teóricos, em que basta ler alguns textos profundos para deslanchar na oração contemplativa. São práticos! É preciso viver e sofrer uma adaptação psicológica para que a mente seja suscetível à psicologia da graça. Isso demora, leva anos de perseverança, até que a fé desponte em nós e percebamos a ação divina movendo o nosso ser até assumi-lo por completo.
Isso não depende tampouco de cumprirmos freneticamente uma agenda de práticas de devoção, se, com isso, queremos apenas nos “livrar” logo das obrigações contraídas com Deus. Também não se evapora numa espécie de recomendação genérica à oração, ao modo pietista, em que o empenho por rezar se perde num oceano de indefinições.
É a junção da doutrina espiritual e da prática da mesma, numa mescla de oração mental e orações vocais, exames e leituras, realizados com humilde simplicidade, com perseverança heróica e paciente, com amor intenso à cruz, que vagarosamente nos vai levando à união divina, deixando para trás o nosso eu, como um barco que se afasta progressivamente do cais.
A moral cristã não é como uma clínica de estética em que a pessoa vai para sentir-se mais bonita. Ao contrário, é o único meio para nos esvaziarmos de nós mesmos e nos enchermos da beleza de Deus, de sermos fascinados por ele.
Do outro lado, porém, os pseudo-escrupulosos lêem tratados de moral como doentes mentais que se dedicam à leitura de bulas de psicotrópicos: além das próprias doenças, acabam desenvolvendo sintomas por puro reflexo; a criatividade do pecado se aguça e, porque não têm o devido preparo, acabam se tornando obsessivos e, pior!, acabam tornando outros vítimas de sua própria obsessão. Certa vez, um rapaz me disse que nunca teve problemas com a guarda da vista, até assistir uma aula de moral em que se detalhou de tal modo os problemas de castidade, que ele passou a ver o que não via e a pensar no que não pensava…
A formação da consciência moral é arte muito delicada. Causa medo ver tanta gente enlouquecendo a si mesmo e aos outros por se comportarem como cirurgiões pelo único motivo de portarem um bisturi. Muita informação sem bom senso apenas é ferramenta de desorientação. De pouco vale muita lei sem prudência e muita mística sem ascética, é como entregar a constituição nas mãos de um juiz louco ou como tratar um canceroso com maquiagens.
A preocupação obsessiva por apresentar listas exaustivamente minuciosas de pecados esconde, muitas vezes, um arrependimento pouco teologal. Em outras palavras, o remorso causado pelo orgulho ferido é muito diferente da contrição por ter ferido o amor divino fluente em nossa alma. Confessar-se para apenas declarar maus atos como quem passa por um pedágio para comungar é muito diferente de confessar-se para uma genuína e profunda conversão.
Quantas pessoas pecam em previsão de uma confissão no dia seguinte? Quantos comungam prevendo o pecado que cometerão daqui a pouco? Quantos se confessam de picuinhas estúpidas e escondem faltas de caridade gigantescas, folga com as pessoas de sua casa, descuido por uma oração profunda e constante, vaidade imensamente manifestada na incapacidade de reconhecer os próprios erros, insensibilidade com quem sofre e verdadeiros e graves descuidos na castidade? Há muitas pessoas preocupadas com erudições morais e o que deveriam fazer é parar de ver pornografias e outros que sabem tudo sobre as “Moradas” e nem rezam direito o terço.
O pior de todos os pecados capitais é a soberba, ao menos segundo as Sagradas Escrituras e a Doutrina da Igreja. Assim como as monjas de Port Royal, das quais se dizia que “eram puras como os anjos e soberbas como os demônios”, há muitos desses pseudo-escrupulosos cujo eu está entronizado devidamente no altar de sua própria devoção, como um bezerro de outro, como um ídolo que precisa ser pulverizado para tornar-se pó, terra, o húmus da humildade.
Esses breves artigos sobre os pseudo-escrupulosos são uma tentativa de devolver o bom senso e aliviar a perturbação mental com a qual tantos têm sofrido. Nesses dias, uma pessoa escreveu-me em privado que a leitura de um desses textos impediu-a de suicidar-se por causa do desespero moral. É nesse nível que estamos! Isso não é uma brincadeira, não é um mero debate…
Encerro essa série por aqui, lembrando a todos que o estudo da Teologia Moral é sempre muito salutar, desde que tenhamos equilíbrio psíquico e nos preparemos para ele conhecendo intimamente o Catecismo da Igreja, integralmente a filosofia e a teologia de São Tomás em sua inteireza, todos os documentos magisteriais, inclusive aqueles mais atuais, especialmente os sobre a doutrina moral e os que modificam leis eclesiásticas, sem descurar a própria metodologia prática dessa disciplina, pois uma coisa é estudar receitas de pão e outra, completamente diferente, trabalhar numa padaria.
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Pe. José Eduardo de Oliveira, via Facebook
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